Num desses dias, acordei, com a voz do meu corpo. Dizia-me ele duma dor indefinível, indecifrável , até. Era como estar na beira de um precipício sem saber , o movimento a executar: se para a frente , se para trás. A localização desta dor era no entanto visivelmente precisa: no entroncamento em cruz no ponto entre os anseios desmedidos e a ambição redutora.
Tentava eu equilibrar-me no vão estreito da razão esperando pela doutrina da transfiguração.
Naquele preciso momento , Esmeralda , a minha vizinha do décimo terceiro esquerdo , safirou-me um olhar , agravando o meu já de si precário estado emocional. Naquele dia ela não falou uma palavra sequer ( ufa!! agradeci aos ventos ); é verdade , sua voz punha-me disfuncional , todo em tremuras , meus neurónios quedavam-se em absoluta inactividade. O olhar não , esse tinha o imaculado potencial do adorno , quero dizer que ela despia-me quando me olhava , dava-me frios e calores conforme ela assim o entendesse.
Já tivera um dia parecido , num passado verão quentíssimo , quando o seio de Esmeralda e por via do aperto no elevador do prédio , se roçara no meu braço no trajecto entre o rés-do chão e o décimo terceiro andar; fervi-me esbanjando suores. Mais platónico , menos platónico estava assim o meu amor por ela . A vontade de reconstruir situações passadas para efeitos de conhecimento objectivo ultrapassava-me. Esta recordação afundou-me um pouco mais na insatisfação da rotinada repetição.
“Quebre a sua rotina , pare o seu dia-a-dia e medite bastante. Os astros sugerem que quanto mais tranquilo estiver , melhor produtividade e rendimento terá”. Rezava assim o meu horóscopo ignorando completamente o meu estado de alma. Houvera tempos em que eu tentara cumprir escrupulosamente os desígnios ditados pelo meu horóscopo. Escrupulosamente vezes sem conta repeti-me no desengano.
Já eram difíceis os mastigáveis sustentos do quotidiano , o rendilhado aluguer da casa , o dolorido comportamento cívico do trabalho, dias há , que até o respirar se cansa. Do meio humano não há grandes ajudas: filho dá murro no pai , marido mata mulher , ouve-se um fado como em música de fundo , exponenciais impostos em crescendo.
- Já leu o livro “ O Deus do Amor” ? perguntou-me a Senhora ClaraBela a dona da livraria , onde acabara de entrar para me imaginar nos títulos das obras espostas.
Saberia ela da minha devoção a Esmeralda? Teria ela lido nas entrelinhas? Esmeralda era também frequentadora da livraria.
Não era possível , eu nunca dialogara com Esmeralda , nem ali nem em nenhures , ouvira sempre os seus diálogos com outros , isso sim. Recompus-me quando a Senhora ClaraBela me recitou uma promoção comercial qualquer , um primeiro lugar de um qualquer toplivros: o livro era o número um do top de vendas , daí a sua recomendação.
Uma carga céptica envolvia-me quando entrei no elevador do meu prédio. O fecho da porta do elevador naquele momento representava o meu mundo: fechado em quatro chapas de zinco , cerca de um metro cúbico respirável e alguns manipuláveis botões. A paragem no décimo terceiro andar , trouxe a entrada de Esmeralda no cubículo, reduzidamente vestida , seu destino parecia ser uma ida à praia. O meu coração batucou violentamente na minha jugular , tive a esperança que uma qualquer ordem organizacional , criasse o processo da desordem; o universo começara também com uma desintegração , e ao desintegrar-se organizou-se. A agitação calorífica intensa provocada por Esmeralda foi fatal: o calor é agitação , remoinho , movimentos em todos os sentidos , formaram-se partículas e uniram-se umas ás outras. Nos sois que se sucederam, ardemos em chamas, até porque o elevador resolvera parar entre o oitavo e sétimo piso.
Viver da morte , morrer da vida foi o que nos aconteceu até sermos salvos pelo técnico dos elevadores.
3 comentários:
:)
adorei
Oh Kim que inspiração...quase que ficava sem fôlego ao tentar sorver cada palavra...
Beijinho
Instigante...
Obrigada.
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