0.Introdução
Os grandes dilemas da encruzilhada
civilizatória marcam a contemporaneidade. O futuro (outrora a aposta segura
para o investimento de esperanças) tem cada vez mais sabor de perigos
indescritíveis (e recônditos!). Então, a esperança, enlutada, e desprovida de
futuro, procura abrigo num passado outrora ridicularizado e condenado, morada
de equívocos e superstições.
O
fenómeno da ‘fadiga da imaginação’, a exaustão de opções, emerge. A aproximação
do fim dos tempos pode ser ilógica, mas por certo não é inesperada.”
Nas últimas décadas esta crise
civilizatória vem-se arrastando e ampliando, em grande medida associada a dois
principais factores: fenómeno crescente do declínio dos regimes democráticos,
consequência do projecto de supremacia capitalista, projectada na doutrina
neoliberal instalada a partir dos anos 1970, fazendo desaparecer as fronteiras
e ideologias e o segundo bem mais destrutivo, está relacionado com mudanças climáticas
decorrentes da acção antrópica, ou seja a relação extractivista e predatória do
capital com a natureza.
Nessa
perspectiva, somos um organismo patogénico, pois não há como manter 7,8 bilhões
de seres humanos (estimativa actual, segundo a ONU) sem que haja uma devastação
dos ecossistemas da Terra.
A partir da primeira metade do
século XIX, quando a Revolução Industrial estava se consolidando na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos, desencadeou-se um salto populacional
exponencial que multiplicou por oito o número de pessoas no planeta,
Só
nos últimos quarenta e cinco anos, o número de seres humanos dobrou em relação
a todo o período de evolução do Homo sapiens, estimado em torno de
350 mil anos. Passamos de 4,06 bilhões
em 1975 para 7,8 bilhões, agora, em 2020.
Os
humanos e os animais criados por eles ocupam hoje 97% da área global
considerada área ecúmena (área habitável), restando apenas 3% para os animais
silvestres. Segundo o Relatório Planeta
Vivo (2020),
divulgado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF), entre 1970 e 2016, as populações desses vertebrados silvestres sofreram
uma redução de 68%, o que evidencia que estamos a caminho de uma nova extinção
em massa da vida na Terra.
1.Os grandes dilemas
Nas
quatro últimas décadas, o sistema Terra vem sofrendo uma fenomenal carga de
destruição que nós não sabemos como ele irá se readaptar, para além das
catástrofes ambientais que já estamos assistindo. O escritor Reg Morrison,
especialista em assuntos ambientais e evolutivos, em um dos seus livros,
prefaciado pela reconhecida bióloga Lynn Margulis, ele projecta que “a curva
descendente deve espelhar a curva de crescimento da população” e, desse modo,
prevê que, assim como tivemos um pico de crescimento populacional em apenas 45
anos, “o grosso do colapso não levará mais que cem anos, e, por volta de 2150,
a biosfera deverá ter voltado, com segurança, à sua população de Homo sapiens
pré-praga – algo entre meio e um bilhão”, equivalente ao período em que o
capitalismo ainda estava nos seus primórdios.
Brevemente faremos a passagem do antropoceno para o necroceno, como sugere Morrison. O activista político estadunidense
Noam Chomsky, reforça que “estamos em
uma confluência surpreendente de crises muito graves” que podem nos levar à
extinção.
2.A
Necropolítica
Dentro
de todo esse quadro distópico e incognoscível, a necropolítica parece
constituir a mais nova e sofisticada forma estatal de reprodução capitalista,
como tão bem identificou o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Fazer viver e deixar morrer – ou
definir quem vai sobreviver ou quem vai morrer – faz parte de um conjunto de
políticas de controle social através da morte: a chamada necropolítica, como
define Achille Mbembe.
Rosa Luxemburgo filósofa e
economista polaco-alemã (cem anos atrás) propunha a visão de que o sistema
capitalista se comporta como um parasita e que este estaria ameaçado por falta de hospedeiro. No
entanto, com a doutrina neoliberal, o capitalismo parece ter alcançado os
últimos confins do mundo e não manifesta qualquer sinal de arrefecimento. O capitalismo, hoje em sua versão
algorítmica, está mais vivo e criativo do que nunca.
A
visão economicista de mundo, vigente há mais de trezentos anos, criou um
autómato que escapa à nossa capacidade de compreendê-lo. Daí a necessidade de
buscarmos melhores métodos de compreensão da realidade e sermos bem mais
criativos que o capital.
Tentando
ser mais didáctico nesta reflexão,
levantarei aqui três pressupostos, imbricados entre si, para tentar explicar a
complexidade da realidade emergente e ao mesmo tempo identificar os impeditivos
à nossa imaginação, os prováveis entraves à mudança do nosso modo de vida. São
eles: a cegueira cognitiva, o
patriarcado e a política que daí decorre.
3.A cegueira cognitiva
O problema do mundo está no animal
humano, na medida em que impomos um modelo de sociabilidade incongruente com o
meio ambiente, precisamos de uma nova visão de mundo que supere a actual visão
mercadológica, ou que pelo menos nos permita criar uma realidade que não seja
tão insustentável e distópica quanto a que temos à nossa frente. Sabemos demais
como fazer guerra, como controlar o povo, como : “a maior miséria da ciência é
ter fundado uma neutralidade tão comprometedora e tão infeliz (…) ao lado de
fantástica competência formal, que cresce em ritmo considerável, não tem nada a
dizer sobre a felicidade do homem (…). A ciência emerge como possivelmente
monstruosa: a criatura humana interferir na ecologia, mas não sabemos quase
nada, por vezes nada, de como sermos mais felizes”.
A
ciência é um método de investigação e, portanto, sua principal função é
aproximar o conhecimento humano da realidade. Se a ciência não cumpre este
papel, ela termina por alimentar a nossa cegueira acerca da realidade e, assim,
em vez de solucionar os problemas criados pelos humanos acaba por
amplificá-los. Em boa medida, parece ter sido isso o que ocorreu com a ciência
produzida até o início do século XX, como sugere o educador e sociólogo Pedro
Demo. Entretanto, a concepção de mundo oferecida pelas novas ciências da
complexidade, surgida especialmente a partir da segunda metade do século XX,
começou a superar esta situação e pode nos inspirar nesse difícil
empreendimento de eliminar a nossa cegueira sobre a dinâmica da realidade em
nosso entorno, ciência da complexidade ou pensamento complexo, que tem no sociólogo, antropólogo e filósofo
francês Edgar Morin
um de seus maiores expoentes, defensor da necessidade de uma reforma do
pensamento.
Eis alguns considerados mais
relevantes: relatividade (Einstein, 1905), princípio da incerteza (Heisenberg,
1927), estruturas dissipativas (Prigogine, 1977), teoria do caos (Briggs, Peat,
2000; Gleick, 1989; Lorenz, 1996), teoria dos fractais (Mandelbrot, 1983;
Zimmerman, Hurst, 1993), teoria das catástrofes (Thom, 1989), lógica fuzzy
(Kosko, 1995).
Novos
conceitos sociológicos como “pós-industrial” (Kumar, 1997), “pós-moderno”
(Kumar, 1997; Harvey, 2001), “sociedade da informação” (Castells, 1999),
“modernidade reflexiva” (Giddens, 1997), “modernidade líquida” (Bauman, 2001),
“hipermodernidade” (Lipovetsky, 2004). Como bem constatou, ainda nos anos 1990,
o Nobel em Química (1977), Ilya Prigogine, “assistimos ao surgimento de uma
ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos
põe diante da complexidade do mundo real”.
A
complexidade (a origem do termo complexo vem do latim complexus,
significa “tecido junto”) é uma visão de mundo aberta. Ela procura acolher e
conciliar as inúmeras “verdades” existentes acerca da realidade. Está em
permanente processo de descoberta, desconstrução e reconstrução, em um
permanente diálogo com a realidade. Seus principais atributos estão ligados à
ideia de aleatoriedade, ambiguidade, instabilidade, multiplicidade,
imprevisibilidade e incerteza. Como já intuía Dostoiévski, “nada é mais
improvável que a realidade”. Como a visão de mundo hegemónica que sustenta o
economicismo actual ainda é predominantemente orientada pelo pensamento
cartesiano, pela ideia de fragmentação, ordem, controle e certeza, ainda
estamos condicionados a um modelo mental que não consegue perceber e lidar com
a complexidade do mundo real.
“A
complexidade não é um conceito teórico e sim um facto.
O
que caracteriza a actual mudança de época histórica, uma transição marcada pela
sensação de incerteza, instabilidade, descontinuidade, desorientação,
insegurança e vulnerabilidade. Algo similar, por exemplo, ao que ocorreu na
história quando o agrarianismo foi
superado pelo industrialismo a partir do século XVIII.
Nesse contexto, os “sintomas
mórbidos” surgem, como já ressaltava o grande filósofo italiano António
Gramsci, porque na crise o “velho está morrendo e o novo ainda não pode
nascer”. No entanto, já existem algumas estratégias.
Uma delas, por exemplo, é aplicar os
chamados Operadores Cognitivos do Pensamento Complexo, desenvolvidos, faz um bom tempo,
por autores de diversas áreas do conhecimento são eles: circularidade,
autoprodução/auto-organização, operador dialógico, operador hologramático,
integração sujeito-objecto e ecologia da acção.
4. O patriarcado versus política .
Há
outro grande impasse a ser superado, intimamente relacionado a esta nossa
cegueira cognitiva: a cultura
patriarcal, como veremos a seguir.
Nosso condicionamento patriarcal milenar de origem biológica (ou existencial
como preferem alguns) mas também cultural, que podem ou não estar congruentes
entre si. É neste ponto que a história precisa ser revisada. O cultural aqui
refere-se às capacidades adquiridas, no sentido antropológico do termo, em que
criamos crenças, valores, técnicas, arte, moral, costumes etc, que, em
conjunto, expressam a visão de mundo por meio da qual moldamos a nossa
realidade. Nesse sentido, a compreensão antropológica da trajectória do Homo
sapiens tem uma vertente pouco estudada e valorizada que entende que
há flutuações nesta congruência entre o biológico e o cultural, em que o
cultural pode sobrepor-se ao biológico.
Este
assunto está aprofundado e registado no livro O Cálice e a Espada:
nossa história, nosso futuro (Palas Athena, 2007), da socióloga
austríaca Riane Eisler, no qual ela investiga como se deu, em algum momento do neolítico, a “encruzilhada evolutiva
em nossa pré-história, quando a sociedade humana foi violentamente
transformada”. Ela se refere à passagem da “sociedade de parceria” para a
“sociedade de dominação”.
Amparada
em estudos de conceituados arqueólogos, antropólogos e sociólogos, Eisler
defende a ideia de que houve uma “transformação cultural”, a partir de uma
revisão sócio antropológica de como se deu a evolução das sociedades humanas,
na qual ela propõe dois modelos básicos de sociedade: modelo dominador, é
popularmente chamado patriarcado ou matriarcado – a supremacia de uma metade da
humanidade sobre a outra e segundo, no
qual as relações sociais se baseiam primordialmente no princípio de união em
vez da supremacia, pode ser melhor descrito como modelo de parceria.
O
trabalho de Eisler é talvez uma das pesquisas mais abrangentes e
transdisciplinares acerca da nossa evolução cultural na pré-história. Além das
muitas evidências arqueológicas, históricas e sociológicas, a teoria da
“transformação cultural” defendida por Eisler ampara-se também em algumas das
recentes teorias da complexidade, especialmente na teoria do caos e da
auto-organização dos sistemas, em que grandes mudanças podem ser explicadas
“nos pontos de bifurcação e nas encruzilhadas críticos dos sistemas”.
Inclusive, essa ideia a faz pensar que o actual “modelo de dominação
aparentemente está chegando a seus limites lógicos” e que “hoje nos encontramos
em outro ponto de bifurcação potencialmente decisivo”.
Reforça
o neurobiólogo chileno Humberto Maturana, para quem “a origem antropológica do Homo sapiens não se
deu através da competição, mas sim através da cooperação”.O biólogo e
antropólogo inglês Gregory Bateson afirmava: “a fonte de todos os problemas de
hoje é o hiato entre como pensamos e como a natureza funciona”.
Um
modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as
hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação
de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por
meio da apropriação da verdade.
A
noção de cultura patriarcal a abordar é bem mais ampla do que a do senso comum
que a traduz pelo comportamento machista ou pela grande parte da academia que a
caracteriza como um sistema de dominação e opressão do homem sobre a mulher.
A
cultura matríarcal pré-patriarcal era, também conforme define Maturana,
caracterizada por “conversações de participação, inclusão, colaboração,
compreensão, acordo, respeito e co-inspiração”, atributos que evidenciavam uma
cultura “centrada no amor e na estética, na consciência da harmonia espontânea
de todo o vivo e do não vivo, em seu fluxo contínuo de ciclos entrelaçados de
transformação de vida e morte”. Não significa dizer que não havia guerras e
conflitos.
Para
o filósofo, antropólogo e arqueólogo Gordon Childe, a cultura dos europeus
primitivos era “pacífica” e “democrática”, sem traços de “chefes concentrando a
riqueza das comunidades”, o que o levou à conclusão de que “a antiga ideologia
foi modificada, o que pode reflectir uma mudança da organização da sociedade,
de matrilinear para patrilinear”.
Segundo
este modelo, o que existiu antes da civilização foi antecedido primeiro por uma
fase de “selvageria” (caçadores-coletores) e depois de “barbárie” (agricultores
e pastores).
Confrontados
com as trágicas experiências do século XX, as leituras sócio antropológicas
tendem a pensar que não há nada mais selvagem do que a civilização
Immanuel
Wallerstein fez a seguinte reflexão: “somos mais civilizados? Eu não sei. Esse
é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o
não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros
que tentam destruir os civilizados. Da maneira como as sociedades evoluem o
neoliberalismo está conduzindo o nosso Mundo para um colapso ambiental. Há uma
relacção mercadológica doentia a troca
não monetária de valor é o coração e a alma da comunidade, e a comunidade é o
elemento essencial, inevitável, da sociedade civil. (…) Numa troca não monetária
de valor, dar e receber não é uma transacção. É uma oferta e uma aceitação. Na
natureza, quando um ciclo fechado de dar e receber se desequilibra, logo vem a
morte e a destruição. É assim na sociedade.”
As
maiores expressões do patriarcado, enquanto instância de controle e dominação,
estão representadas nas duas principais forças que conduzem a humanidade: o
Estado (hoje declinante), pela sua natureza autoritária, e o mercado (cada vez
mais ascendente), pelas subjectividades que produz. Estas expressões podem
também ser observadas sob as mais variadas formas de relações sociais:
familiares, institucionais, educacionais, empresariais, religiosas, dentre
muitas.
Pode
ser que estejemos em uma nova bifurcação cultural em direcção a uma sociedade
neomatrística, na qual o Homo sapiens-demens, como prefere Morin,
pode se reconciliar com a sua condição natural.
O ser humano é um animal que não
vive sem ilusões e são elas de agora em diante, nosso propósito será
identificar nossas imbatíveis ilusões”. Precisa-se urgentemente de uma política
que dialogue com a realidade.
John Gray, no seu livro Cachorros
de palha (Record, 2006), causou um certo pavor moral em muitos
sectores da ciência e da filosofia ainda impregnados com a ideia de que o
progresso trará a salvação da humanidade. Em uma das passagens do livro, ele
afirma: “a acção política veio a ser um substituto para a salvação, mas nenhum
projecto político pode salvar a humanidade de sua condição natural. Por mais
radicais que sejam, os programas políticos são modestos expedientes concebidos
para lidar com males recorrentes. (…) Cachorros de palha argumenta a favor de
uma mudança que se afaste do solipsismo humano. Os humanos não podem salvar o
mundo, mas isso não é razão para desespero. Ele não precisa de salvação.
Felizmente, os humanos nunca viverão num mundo construído por si mesmos.”
Para
a maioria ainda condicionada ao pensamento binário que sustenta a cultura
patriarcal, a filosofia de Gray é desconcertante.
5. Conclusão
Os
espaços políticos hoje estão deteriorados não só por conta do neoliberalismo
que vem impondo o modelo empresa de sociabilidade, negador da
institucionalidade e da política, mas porque o tipo de política de base
patriarcal não é mais tolerado pela nova dinâmica sociocultural que emergiu
depois de 1968, quando houve o movimento desencadeado por estudantes e
trabalhadores na França, considerados por alguns como a primeira manifestação
global pelo fim de posturas conservadoras e opressoras.
Diante
dos crescentes fundamentalismos, religiosos e de mercado, que absorvem o Estado
e degradam os regimes democráticos, os actores políticos que ainda não se
dobraram ao fetiche neoliberal dificilmente conseguiram reverter as regressões
em curso se continuarem adoptando a mesma prática política orientada por lutas
de classe ou ideológicas.
O
Capital ainda constitui o eixo estruturador da civilização. Mas ainda assim,
recorrer a Marx como muitos vêm fazendo para superar a crise pela “luta de
classes” não parece muito útil e só nos aprisiona ainda mais à arena
patriarcal. O geógrafo britânico e professor emérito de antropologia na City
University of New York, David Harvey, para quem a necessidade hoje consiste em
“estender e aprofundar os mapas cognitivos que carregamos em mente”, é um dos
poucos que resgata Marx e vai além do marxismo. Ele entende que “o capital não
é o único sujeito possível de uma investigação rigorosa e exaustiva dos nossos
males contemporâneos” e que a “ficção de uma dualidade produz todo tipo de
desastre político e social”.
“Maio
de 1968 ainda não terminou”, ajuda-nos a entender por que superar o patriarcado subjacente à visão mercadológica de mundo é bem
mais produtivo do que tentar inutilmente vencer o capitalismo. Segundo ele,
“o ponto cego de Marx é que o
proletariado também é humano!
O
passado já demonstrou que o fato de ter sido vítima não vacina contra a
tentação de ser algoz, assim como o fato de ter sido colonizado não o impede de
se tornar um dominador. Foi exactamente isso que ocorreu com o “socialismo
real” na Rússia. Na história da humanidade talvez não haja um registo de um
sistema de dominação tão eficiente em sua crueldade quanto o foi o Stalinismo.
O
actual capitalismo de plataforma não só está muito vivo como desafia a noção de
sensatez e sanidade. Eis dois exemplos convincentes, dentre muitos: 1) segundo
o United States Geological Survey, em apenas dois anos, 2011 e 2012, para dar
resposta à crise financeira de 2008, a China consumiu mais cimento (6,651
bilhões de toneladas) do que os EUA consumiram (4,405 bilhões de toneladas) ao
longo de todo o século XX; 2) de acordo com uma estimativa da Bloomberg, empresa de monitoramento de
mercados financeiros, Jeff Bezos, CEO da Amazon, ganhou em um só dia
(20/7/2020) 13 bilhões de dólares, o equivalente a pouco mais da metade do PIB
de Honduras (US$ 23,9 bilhões em 2018), mesmo com a economia em recessão por
conta da pandemia.
Por
isso Harvey, ao reflectir sobre os sentidos do mundo diante de aberrações económicas como estas, defende a
necessidade de criarmos novos “arcabouços teóricos” e abracemos “metodologias mais dialécticas em
que as dualidades cartesianas típicas (como aquela entre natureza e cultura) se
dissolvam em um único fluxo de destruição criativa histórica e geográfica”.
Os exemplos citados dizem muito sobre como o
capitalismo neoliberal deseja moldar o mundo. E não há em curso nenhum projecto
político, no âmbito global, para desviá-lo dessas insanidades. Se a noção de
complexidade define melhor o mundo real, como um sistema de pensamento aberto
que abraça todas as realidades, por que não pensar, então, numa política do
abraço. A metáfora do abraço carrega muitos simbolismos vinculados à noção de
complexidade
vale
a pena ler o ensaio de Mariotti intitulado Os cinco saberes do
pensamento complexo. Nele, Mariotti explica como o “saber abraçar” é
uma poderosa estratégia de integração, que, se agregada à política, pode nos
levar a um modo de viver mais matrístico e menos patriarcal.
Falo
não do abraço no sentido de submissão ao ideário do oponente, seja ele liberal,
socialista, anarquista ou de qualquer outra vertente ideológica, mas do abraço
que dissipa as polaridades e fundamentalismos, e cria novas sociabilidades
inclusivas e plurais. Dos maiores abraços registados na História ocorreu na
segunda guerra mundial. Hobsbawm o descreve nesta passagem do seu livro Era
dos Extremos (Companhia das Letras, 1995): “a democracia só se
salvou porque, para enfrentá-lo (Hitler), houve uma aliança temporária e
bizarra entre capitalismo liberal e comunismo”.
Ao
que parece, os actuais actores políticos precisam ler e compreender Bauman,
Harvey, Morin, Maturana, Eisler e tantos outros. Diante da possibilidade de um
futuro tão distópico, a sensatez recomenda não esperar.
KIMDAMAGNA
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